A vocação de Dona Ana
Se existia uma pessoa que fazia os vizinhos ou qualquer outra criatura fugir correndo naquela cidade de quatrocentos e trinta e seis pessoas, esta era dona Ana Maria Raimunda Bezerra Fonseca da Silva Prado.
E foi justamente este nome que a transformou no que ela era agora aos setenta e sete anos: uma verdadeira e grande chata de galocha.
Desde sua época de criancice, quando precisava escrever seu nome na chamada da escola, Dona Ana Maria se emburrecia toda e escrevia apenas Ana Maria S. Prado. Até então, nada demais. Fora apenas em época de sua mocidade que sua verdadeira vocação para a chatice de galocha surgira. Quando precisava ir ao banco, comprar algo, dar um cheque, assinar algum papel (...) tudo exigia que assinasse aquele nome que parecia mais uma frase inteira do que um substantivo próprio.
E se queriam acabar com seu dia de vez era só fazer como aquela vez em que a pararam na rua e disseram "olá, estamos fazendo uma pesquisa, a senhora poderia assinar seu nome inteiro e sem abreviações aqui, por favor?" ou então comentassem sobre ela: "nossa, que nomão, hein?", pronto. A menina desatava a falar e reclamar e ninguém mais conseguia fazê-la parar.
A partir daí, Ana tomou gosto pela coisa: qualquer conversa, qualquer assunto, não importava mais se caçoavam seu nome ou não, se comentavam ou não, Ana Maria sempre dava um jeito de reclamar do tal nome.
_ Iii dona Ana, olha esse tempo... Vai chover e muito, hein?
_ Pois é dona Jurema, o tempo tá feio... Só não tá mais feio que esse meu nome... - e desatava numa reclamação sem fim.
Ou então:
_ Mas como os preços das coisas aumentaram! A vida tá muito difícil!
_ Se tá difícil pra você, imagina pra mim com esse nome de quarenta e duas letras...
E ai dela se alguém resolvesse tentar tornar as coisas melhores, como a vez em que Seu João resolveu interromper seus lamentos:
_ Bom dia dona Ana!
_ Só se for pra você, Seu João, porque só hoje já tive que assinar duas vezes meu nome completo, acredita?
_Mas sabe que eu acho o nome da senhora um tanto quanto bonito?
Aí era demais: além de reclamar do seu nome, reclamava dos seus pais - que, segundo ela, só podiam odiar muito seu nascimento para dar um nome daquele tamanho pra filha -, reclamava das dores - tinha que fazer fisioterapia porque o pulso não aguentava de tanto assinar, tinha que fazer terapia pra conseguir viver com aquele fardo que era seu nome (...) -, reclamava da idade - já estava velha demais e tinha dias que até esquecia se "Raimunda" vinha antes ou depois de "Bezerra"...
E assim ela continuava até que Seu João admitisse que não havia possibilidade de achar aquele nome bonito e saísse com a cabeça baixa e com o ouvido latejando.
No entanto, Dona Ana ficou tão conhecida por seu prazer em reclamar que seus ouvintes diminuíram, não havia mais uma alma que a cumprimentasse ou lhe desse uma brechinha que fosse para que ela pudesse queixar-se.
Até que o neto do Seu João fora passar as férias na pequena cidade.
O moço já era homem formado e vivia na capital. Assim que Dona Ana vira aquela cara nova na cidade, enxergou a chance para desentalar toda a tagarelice que estava enroscada em sua garganta.
_ Quem é você, rapaz? - perguntou ela sabida de que ele faria a pergunta de volta.
_ Sou Paulo, neto do Senhor João. E a senhora?
Dona Ana sorria de orelha a orelha.
_ Sou Ana Maria Raimunda Bezerra Fonseca da Silva Prado.
_ Puxa, que tamanho de nome! - respondera o rapaz surpreso.
Cheque-mate.
_ Pois é, meu jovem. Você nem imagina o tamanho do trabalho que esse nome me dá! Imagina só você, sendo...
_ Advogado.
_ Isso, advogado, com uma papelada pra assinar, e toda vez, escrevendo esse nome. Escreve, escreve... Tem uma hora que a mão não aguenta. Olha só a diferença da mão que eu escrevo pra outra mão - e ergueu as duas na altura do rosto do rapaz - viu só? Uma ainda está linda, a outra envelheceu mais rápido de tanto escrever...
E continuou. Agora sim, se sentia viva. Era dona de casa mas com certeza nascera para aquilo: falar. Reclamar. Dizer o quanto sua vida era sofrida.
Quando estava no auge de suas reclamações (que era sobre os pais que com certeza não a amavam), Paulo interrompeu:
_ Desculpe a interrupção, mas, como eu disse, sou advogado e, se a senhora tem mesmo problemas no pulso devido ao nome, eu posso entrar com um pedido para que a senhora tire todos e fique apenas com o sobrenome do seu falecido marido...
O homem mal acabara de falar e Dona Ana já estava enlaçando-o com um caloroso abraço apertado. E em menos de dois dias, Ana Maria Raimunda Bezerra Fonseca da Silva Prado chamava-se apenas Ana Maria Prado.
Durante uma semana não saiu de casa. Os vizinhos começaram a se preocupar. A vizinhança toda já comentava que certamente estava admirando seu novo RG, inventando uma nova assinatura ou colocando-o num quadro. Não havia uma pessoa naquela cidade que não estivesse ansioso para conhecer a nova Dona Ana que agora não reclamaria da vida.
Foi num dia de sol que Ana abriu a porta de casa e imediatamente a vizinhança toda apareceu na rua para ver. Nem Dona Ana nem ninguém disse uma palavra. Seu João foi o primeiro a decidir arriscar:
_ Bom dia, Dona Ana... - cumprimentou relutante.
_ Bom dia, Seu João... - a vizinhança toda abriu um sorriso: a Dona Ana de antigamente nunca responderia um bom dia se quer. Mas havia mais. "Com certeza um: como vai você?", pensava Seu João orgulhoso do neto que mudara a vida de sua vizinha - Pois bom dia só se for para você! Acredita que com setenta e sete anos nas costas, não consigo aprender que meu nome agora é Ana Maria Prado e só? Que nominho mais sem graça!