sábado, 15 de novembro de 2014

terça-feira, 26 de agosto de 2014

  A vocação de Dona Ana


  Se existia uma pessoa que fazia os vizinhos ou qualquer outra criatura fugir correndo naquela cidade de quatrocentos e trinta e seis pessoas, esta era dona Ana Maria Raimunda Bezerra Fonseca da Silva Prado.
E foi justamente este nome que a transformou no que ela era agora aos setenta e sete anos: uma verdadeira e grande chata de galocha.
  Desde sua época de criancice, quando precisava escrever seu nome na chamada da escola, Dona Ana Maria se emburrecia toda e escrevia apenas Ana Maria S. Prado. Até então, nada demais. Fora apenas em época de sua mocidade que sua verdadeira vocação para a chatice de galocha surgira. Quando precisava ir ao banco, comprar algo, dar um cheque, assinar algum papel (...) tudo exigia que assinasse aquele nome que parecia mais uma frase inteira do que um substantivo próprio.
  E se queriam acabar com seu dia de vez era só fazer como aquela vez em que a pararam na rua e disseram "olá, estamos fazendo uma pesquisa, a senhora poderia assinar seu nome inteiro e sem abreviações aqui, por favor?" ou então comentassem sobre ela: "nossa, que nomão, hein?", pronto. A menina desatava a falar e reclamar e ninguém mais conseguia fazê-la parar.
  A partir daí, Ana tomou gosto pela coisa: qualquer conversa, qualquer assunto, não importava mais se caçoavam seu nome ou não, se comentavam ou não, Ana Maria sempre dava um jeito de reclamar do tal nome. 
  _ Iii dona Ana, olha esse tempo... Vai chover e muito, hein?
  _ Pois é dona Jurema, o tempo tá feio... Só não tá mais feio que esse meu nome... - e desatava numa reclamação sem fim.
  Ou então:
  _ Mas como os preços das coisas aumentaram! A vida tá muito difícil!
  _ Se tá difícil pra você, imagina pra mim com esse nome de quarenta e duas letras... 
  E ai dela se alguém resolvesse tentar tornar as coisas melhores, como a vez em que Seu João resolveu interromper seus lamentos:
  _ Bom dia dona Ana!
  _ Só se for pra você, Seu João, porque só hoje já tive que assinar duas vezes meu nome completo, acredita?
  _Mas sabe que eu acho o nome da senhora um tanto quanto bonito?
  Aí era demais: além de reclamar do seu nome, reclamava dos seus pais - que, segundo ela, só podiam odiar muito seu nascimento para dar um nome daquele tamanho pra filha -, reclamava das dores - tinha que fazer fisioterapia porque o pulso não aguentava de tanto assinar, tinha que fazer terapia pra conseguir viver com aquele fardo que era seu nome (...) -, reclamava da idade - já estava velha demais e tinha dias que até esquecia se "Raimunda" vinha antes ou depois de "Bezerra"...
  E assim ela continuava até que Seu João admitisse que não havia possibilidade de achar aquele nome bonito e saísse com a cabeça baixa e com o ouvido latejando.
  No entanto, Dona Ana ficou tão conhecida por seu prazer em reclamar que seus ouvintes diminuíram, não havia mais uma alma que a cumprimentasse ou lhe desse uma brechinha que fosse para que ela pudesse queixar-se. 
  Até que o neto do Seu João fora passar as férias na pequena cidade.
  O moço já era homem formado e vivia na capital. Assim que Dona Ana vira aquela cara nova na cidade, enxergou a chance para desentalar toda a tagarelice que estava enroscada em sua garganta.
  _ Quem é você, rapaz? - perguntou ela sabida de que ele faria a pergunta de volta.
  _ Sou Paulo, neto do Senhor João. E a senhora?
  Dona Ana sorria de orelha a orelha.
  _ Sou Ana Maria Raimunda Bezerra Fonseca da Silva Prado.
  _ Puxa, que tamanho de nome! - respondera o rapaz surpreso.
  Cheque-mate.
  _ Pois é, meu jovem. Você nem imagina o tamanho do trabalho que esse nome me dá! Imagina só você, sendo... 
  _ Advogado.
  _ Isso, advogado, com uma papelada pra assinar, e toda vez, escrevendo esse nome. Escreve, escreve... Tem uma hora que a mão não aguenta. Olha só a diferença da mão que eu escrevo pra outra mão - e ergueu as duas na altura do rosto do rapaz - viu só? Uma ainda está linda, a outra envelheceu mais rápido de tanto escrever...
  E continuou. Agora sim, se sentia viva. Era dona de casa mas com certeza nascera para aquilo: falar. Reclamar. Dizer o quanto sua vida era sofrida. 
  Quando estava no auge de suas reclamações (que era sobre os pais que com certeza não a amavam), Paulo interrompeu:
  _ Desculpe a interrupção, mas, como eu disse, sou advogado e, se a senhora tem mesmo problemas no pulso devido ao nome, eu posso entrar com um pedido para que a senhora tire todos e fique apenas com o sobrenome do seu falecido marido...
  O homem mal acabara de falar e Dona Ana já estava enlaçando-o com um caloroso abraço apertado. E em menos de dois dias, Ana Maria Raimunda Bezerra Fonseca da Silva Prado chamava-se apenas Ana Maria Prado.

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 Durante uma semana não saiu de casa. Os vizinhos começaram a se preocupar. A vizinhança toda já comentava que certamente estava admirando seu novo RG, inventando uma nova assinatura ou colocando-o num quadro. Não havia uma pessoa naquela cidade que não estivesse ansioso para conhecer a nova Dona Ana que agora não reclamaria da vida.
  Foi num dia de sol que Ana abriu a porta de casa e imediatamente a vizinhança toda apareceu na rua para ver. Nem Dona Ana nem ninguém disse uma palavra. Seu João foi o primeiro a decidir arriscar:
  _ Bom dia, Dona Ana... - cumprimentou relutante.
  _ Bom dia, Seu João... - a vizinhança toda abriu um sorriso: a Dona Ana de antigamente nunca responderia um bom dia se quer. Mas havia mais. "Com certeza um: como vai você?", pensava Seu João orgulhoso do neto que mudara a vida de sua vizinha - Pois bom dia só se for para você! Acredita que com setenta e sete anos nas costas, não consigo aprender que meu nome agora é Ana Maria Prado e só? Que nominho mais sem graça!


segunda-feira, 18 de agosto de 2014

  Ah, aquela mulher...


  _ DESTA VEZ NÃO TEM MAIS VOLTA, RITA!
  Carlos gritou e bateu a porta com toda sua força. Pegou a mala que ele mesmo havia jogado no quintal de casa e saiu.
  Embora não aguentasse mais aquela mulher, ficou parado ainda por cinco minutos na calçada, pra ver se ela saia e implorava para ficarem juntos dizendo fazer qualquer coisa para reatar e que nunca mais iria aos bailes de sexta. Eles então se abraçariam e Rita mais uma vez lhe diria o quão grande era seu amor por ele.
  Durante os primeiros dias, lhe daria um gelo enquanto a mulher faria tudo para reconquistar seu coração e ele fingiria nem ligar, mas quando ela já estivesse triste demais, achando que ele não mais a amava, ele chegaria com a surpresa: flores e um anel de brilhante e PIMBA! Abraçar-se-iam de novo e ele a colocaria na cama para comemorarem.
  Resolveu sentar na calçada e esperar mais um pouco, vai ver Rita ainda estava se recompondo do choro antes de ir a procura dele. Não que ela estivesse chorando quando ele saíra, mas com certeza por puro orgulho. Ah, não tinha mulher mais orgulhosa que Rita. Mas sem ele para vê-la, com certeza agora se debulhava em lágrimas.
  Realmente, não aguentava mais aquela mulher.
  Como podia ela ter-lhe tanta ingratidão? 
  Após um longo dia de trabalho para sustentá-la com tudo do bom e do melhor sem que ela precisasse fazer nenhum esforço, para chegar em casa naquele momento e encontrar o personal trainer lhe fazendo massagezinha nos pés enquanto tomavam vinho e conversavam às gargalhadas? Era demais para ele!
  Tudo bem que Rita o convencera a contratar o Ricardão como personal porque a coitadinha se sentia desconfortável ficando naquele ambiente cheio de homens suados que era a academia e além do mais, ela era uma mulher comprometida com ele... Ah, aquela mulher o amava demais.  
  Agora que pensara, lembrou-se de outras tantas demonstrações de amor que ela tinha para com ele: não saia da cama antes do meio-dia para poder esperar bem acordada até a hora dele chegar. Nunca fazia a janta, não que não cozinhasse bem, mas porque adorava a comida cheia de amor do seu maridinho. Sua presença nos shoppings da cidade pelo menos uma vez por semana era confirmada, pois ela precisava comprar roupas para estar sempre linda para ele. Além disso, ia aos bailes todas as sextas para "exibir-se" e depois dizer que tudo aquilo era só de Carlos.
  _ Sua fama esta boa na cidade, viu? - dizia ela quando via Carlos de cara feia por ela sair novamente - Todo mundo morre de inveja sua, Carlinhos... Outro dia ouvi alguém dizer que "sortudo era o Carlos, chega todo dia em casa com aquele mulherão o esperando" e se eu não for aos bailes, nem às festas com minhas amigas, quando é que vão me ver para te invejarem, hã? - e Carlos ria cheio de si.

  Ah, aquela mulher não vivia sem ele. Resolveu então dar-lhe mais uma chance, desta vez, mostrando que quem mandava era ele. 
  Pegou a mala, abriu o portão e entrou. Ficara tanto tempo divagando que nem notara que o Ricardão encontrava-se ainda na casa, massageando sua querida esposa, só que agora, os ombros. Quando deparou-se com a cena, não pudera pensar em outra coisa: "com certeza Rita ficou tão tensa por eu ter saído de vez que precisou de uma massagem nos ombros para aliviar o estresse. Essa mulher é doida por mim".
  Carlos então encheu o peito de toda masculinidade e coragem que havia em seu corpo de sessenta quilos e disse em tom imponente:
  _ Ricardão, acho que o treino de hoje já encerrou. - O personal então
 levantou-se deixando claro que media o dobro tanto da altura, como da largura de Carlos. No entanto, o homenzinho não titubeou e continuou seu discurso agora se dirigindo a Rita - Querida, voltei pois sei que você não vive sem mim, mas agora, quero deixar BEM CLARO (levantara a voz exatamente nessa parte para mostrar que queria dar ênfase, como vira em um filme) que agora, eu é quem mando aqui. 
  Rita levantou os ombros como resposta e dirigiu um olhar a Ricardo para que ele se retirasse e assim ele fez. 
  _ Espero que tenha ficado claro que agora EU (fizera de novo) mando aqui, Ritinha. - e cruzou os braços em frente ao peito querendo mostrar imponência mas parecendo apenas um garotinho emburrado.
  _ Com licença, - era Ricardão aparencendo outra vez - o treino de amanhã ainda está marcado? 
  _ Claro, Ricardo, às 13 horas, como sempre - respondeu Rita com uma piscadela. 
  _ Não! - interrompeu Carlos. Essa era sua oportunidade para mostrar e não deixar dúvidas de que ele era o dono da casa e portanto, quem ditava as regras. Iria impor, sem pedir, sem implorar, sem expressar nenhuma dúvida em sua voz. Autoritário. - Venha às 14 horas, pois amanhã meu horário de almoço é mais tarde e não quero atrapalhar o treino de vocês. - Muito bem dito.
  Saindo da sala, Carlos pôde ainda ver que Rita precisou segurar-se para não cair na gargalhada, com certeza orgulhosa de ver o Ricardão ser rebaixado por seu amado marido. 
"Ah, aquela mulher com certeza não vive sem meu charme..." - pensava consigo enquanto desfazia as malas.

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

 Aninha à primeira vista


 Quando Aninha passava, não tinha mesmo quem não olhasse: pescoços viravam, queixos caíam, olhos arregalavam, corações aceleravam: era uma explosão de sentimentos. 
  Aninha mexia com gente de qualquer tipo.
  Teve uma vez que até mesmo o Paulo, que vivia dando sermão no barzinho da esquina dizendo para quem quisesse ouvir que Deus não existia, soltou um "Meu Deus..." quando a Aninha passou com aquele saião todo florido, sussurrando uma música qualquer e desejando bom dia a todos que passassem por perto. Mesmo depois que a última mecha dos cabelos de Aninha foram vistos dobrando a esquina, Paulo balançava a cabeça como quem não acredita:
  _Mas só pode ser obra de Deus... 
  E os amigos da roda matavam-se de rir. 
  (E mesmo depois de muito tempo, quando Paulo começava com seu discurso de Evolucionismo, alguém da roda fingia avistar Aninha dobrando a esquina e gritava apontando:
  _ Ora, se não é a Aninha-obra-de-Deus passando ali!
  E Paulo olhava rapidamente para trás com esperanças de que a moça estivesse mesmo vindo e, quando percebia que fora enganado, caia na gargalhada com os outros rapazes para disfarçar a enorme decepção que sentia).
  Outrora, fora vez da Madame Viúva Carmem - pois era assim que ela exigia ser chamada desde que seu marido Jorge morrera há cinco anos, inesperadamente - deparar-se pela primeira vez com Aninha. A Madame voltava do mercado quando encontrou com a Comadre Josefina, a senhora gorda e de risada escandalosa que estava sempre sentada na calçada de sua casa, numa cadeira de balanço com um único pretesto: fofocar e espiar a vida alheia.
  _ Mas veja se não é a Madame Viúva Carmem! - exclamou Josefina escandalosamente partindo para um abraço - Comé que vai?

  _ Mas que saudade, Comadre! Vou muito bem e a senhora e a família? - perguntou a Viúva colocando a sacola de compras no chão.
  _ Vou muito bem e a família toda também... Quer dizer, menos o meu sobrinho, Paulo, sofreu muito esses tempos, coitado...
  _ O Paulo!? Mas o que é que ele tem?
  _ Iii Madame, tava com a pior das doenças...
  _ Nossa vida! Mas diga logo!
  _ Tava apaixonado... - respondeu suspirando fundo.
  _ Mas veja se isso é grave, Josefina! Quase me matou de susto! - disse aliviada.
  _ Como não? O homem não comia, veja que emagreceu quase sete quilos em uma semana! - e vendo a cara de piedade que Madame Carmem fazia, continuou: - Pois é, quase não saia mais, só pensava na Aninha e na sua saia florida... 
  _ Aninha? Não conheço...
  _ Ah, a Aninha é uma boa garota, nem liga de ser bonita daquele jeito, sabe que ela poderia até ser modelo se quisesse? Mas só quer saber de ensinar as criancinhas da escola que ela dá aula e ajudar os animais abandonados por aí... - Josefina então interrompeu-se olhando mais a frente - Veja ali, se não é a própria! ANINHA! - gritou chamando a moça.
  _ Boa tarde Dona Josefina! Lindo dia, não? - respondeu a moça se aproximando das duas comadres. 
  _ Não é que está mesmo? - respondeu Madame Carmem como se só agora tivesse reparado e com o sorriso mais bobo que já tivera no rosto. 
  _ Esta é minha comadre Madame Viúva Carmem - apresentou Josefina à Aninha.
  _ Carminha está bom... - corrigiu rapidamente a viúva dando dois beijos na bochecha da moça. 
  _ Muito prazer, Carminha. É uma pena que esteja indo trabalhar agora, então não posso me demorar aqui com as senhoras.
  _ Tudo bem, querida. Passar bem! - e despediram-se da moça.
  O resto da conversa, Madame Carmem passara olhando para o horizonte, salvo os sorrisos em horas que Josefina ria da própria fala ou os "poxa vida..." que exclamava.
  _ Paulo agora até que vai bem, começou a frequentar um psicólogo dos melhores e agora está voltando ao normal, engordando e voltando a frequentar os bares com os amigos... Coitado! A Aninha não quer saber de namorar, é menina focada, só pensa nos estudos e trabalho... Mas olha a hora, Madame! - assustou-se a senhora que desde que Aninha passara, falou sem parar por cerca de meia hora - Preciso entrar e preparar logo o jantar. Passar bem, Carminha! - e foi-se rindo ao lembrar da tão carrancuda Madame Viúva Carmem pedindo para ser chamada de Carminha.


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  Tarde da noite, o telefone da Comadre Josefina tocou.
  _ Mas quem será a essas horas? - levantou-se do sofá resmungando.
  Ouviu-se então do outro lado da linha: 
  _ Alô, Comadre? Aqui é a Vitória, filha da Madame Carmem. A senhora não me passa o número do consultório do psicólogo que ajudou o Paulo a se curar? Acho que minha mãe está com a mesma doença que ele, só sabe abraçar a almofada e suspirar "Aninha, Aninha"...